sexta-feira, 4 de abril de 2014

A propósito do Dia Mundial do Teatro, da teatralidade da mentira

O que para o próprio teatro hoje está prioritariamente em causa não são as suas dificuldades materiais para que se realize em arte, o que ao preço de mercado se tornaria insustentável para a esmagadora maioria da população; nem a redução de postos de trabalho em si, nem tão pouco o consequente decaimento de qualidades, aptidões e competências. Se nos descentrarmos do teatro como coisa em si – onde tudo isto é verdade e verdade altamente preocupante, desde logo porque sinal de uma civilização a desfazer-se da beleza, da sensibilidade e do próprio pensamento em comunhão – é estonteante a teatralidade perversa da mentira, da ocultação e da alienação, presente em actos como a da transmissão de guerras em directo, de desastres naturais como núcleo de atenção até à última gota de sangue ou mesmo o debate (político, mas não só) que se conclui nessa mesma perversidade e não na substância das coisas.

clip_image001[4]clip_image002[4]

Enquanto o teatro na Grécia Antiga começa na sacralização de divindade, estoutra teatralidade do quotidiano actual não serve nem à expressão religiosa, nem ao despertar dos sentidos, nem à aprendizagem do gosto, nem ao apelo ao sentimento, nem à reflexão do pensamento, nem tão pouco ao despoletar das emoções. Desumaniza o Homem, torna absurdo o dia-a-dia, faz perder de sentido o caminho na História e “mata” Deus ou qualquer outra ideia superior à mera troca material, validando tudo: desde a reescravização ordeira dos semelhantes ao totalitarismo de ideia única num império das finanças, um chefe de produtos tóxicos, um povo de miseráveis.

De par, a teatralização de um paraíso na Terra, trazido pela abundância, de que o capitalismo, e só o capitalismo, poderia trazer para justificar a acumulação de riquezas excessivas concentradas em grupos restritos, fez o espectador acreditar que o consumo se podia realizar em progressão geométrica com créditos, para lhe serem, agora, cobrados com garrote em nome de uma outra teatralização: a “crise”, personagem patética do negócio puro e simples da especulação.

Débord, como um visionário, previu a sociedade do espectáculo, caracterizando-o pela re-inversão do sentido das coisas e das palavras, fazendo do Mundo um palco de atracções, fetiches e ilusões. E a questão central que se coloca ao teatro hoje é o do seu papel e da sua própria existência ou sentido, quando a realidade passou a ser virtual, o virtual a realidade, o jogo teatral a verdade, a verdade um mero jogo teatral. Que pode e para que serve o teatro numa vida que é por si mesma prenhe de teatralidade? O Ser Humano transformado em avatar de si mesmo, qual excelente imagem metafórica do “Matrix” original (as sequelas são já parte integrante do consumo teatralizado da sociedade do espectáculo; uma traição a si mesmo), descarta-se de consciência e responsabilidade, transfere para o avatar (personagem) a sua indiferença, individualismo exacerbado, crueldade da indiferença.

clip_image004[4]clip_image006[5]

Pode o teatro (ainda) contrariar esta sua proxenitização na rua? E quem o quer fazer com coragem bastante para afrontar a teatralidade teatralizada em que TODOS vivemos, sob a forma de marionetas manipuladas por uma escassíssima minoria de autores-encenadores de uma tragédia que não permite a catarse sequer. Penso que não só pode e deve, por responsabilidade social e mesmo artística, mas que é mesmo o único caminho que lhe resta se quer sobreviver com uma capacidade mínima de se redescobrir, diferenciando-se dessa outra teatralidade, que o conduziria (ou conduzirá) à morte, quanto mais não seja porque é à morte do que resta humano e grande parte da Humanidade para ela se encaminha neste jogo teatral da hipocrisia e cinismo dos detentores, acumulado até à esquizofrenia, do dinheiro e do poder. Todavia, a ser assim, ainda cumpre, no hara-kiri, a sua essencialidade da mais humana de todas as artes, no sentido de ser momento vivo de homens a fazer de homens-outros na presença de outros homens.

clip_image008[4] clip_image010[4]

Porém, o que infelizmente parece acontecer, é a cedência do seu espaço próprio a essa banalização da arte, quer enquanto substituída pelo entretinimento pérfido de imbecilização, mesmo a nível neuronal, quer quando espalhada como coisa acessível a conceptualismos sem substância e/ou, sobretudo, sem trabalho incorporado e especialização técnica: como todos fomos feitos actores-fantoches na vida vivida, a contaminação do conceito para o teatro como arte mata o actor para dar lugar ao fantoche-actor. A não se re-re-inverter esta tendência da sociedade do espectáculo na própria assunção de um teatro de combate a esta mesma teatralização do teatro, destruindo-o como obra para o transformar em utensílio, o teatro torna-se uma inutilidade, embora permanecendo nisso também, fiel à sua íntima ligação à pessoa humana, que também o deixará de ser para ser um autómato biológico dos senhores do Mundo, enquanto estes não descobrirem uma robótica que substitua o resto humano, mesmo ao nível biológico, sem receio de qualquer sobressalto, num verdadeiro “Admirável Mundo Novo”.

clip_image011[4]clip_image013[4]

Ignorar isto e ficar a pensar no teatro como coisa isolada da realidade no seu todo, não me parece o mais apropriado – nem útil ou necessário para o próprio teatro – num tempo em que estamos a dois passos do maior holocausto de sempre. Seja hoje de máscara sorridente no rosto em democrática escolha de mais do mesmo, ou amanhã metendo-nos em campos de concentração que prendam e abatam os corpos, depois de abatidas e mortas, as consciências e a emancipação da própria autoconsciênca, justamente através desta teatralidade da mentira.

Castro Guedes, Encenador

Director Artístico de Dogma 12

Publicado no Quinzenário “As Artes Entre As Letras”

Sem comentários:

Enviar um comentário