“INDÚSTRIAS CULTURAIS”?...
De súbito, tornou-se “moda” falar de
“indústrias culturais”, sem reflectir no contra-senso de que o próprio
conceito, em forma e conteúdo, está impregnado. Trata-se, de facto, de um
disparate rematado, que os incautos podem ter por bom, carecendo de desmontagem
para não gerar equívocos. Já bastam os que bastam!
Tirando o caso do cinema, que é uma indústria
sem ter que deixar de ser arte, não há indústrias culturais. Os bens culturais
(perenes ou efémeros) são únicos e irrepetíveis. O cinema pode processar-se em produção
massivamente por via de cópias que podem ser exibidas em simultâneo por todo
Mundo enquanto produto ele mesmo e não “imitação” ou registo da obra de arte em
si. Isso confere-lhe, até certo ponto, a razoabilidade da aceitação do termo,
embora seja preciso fazer uma distinção entre a “criação” e a “distribuição”, o
que melhor se clarifica no último parágrafo deste artigo. Mas penso ser mesmo
caso único porque no mais não há espaço a confusões. Nas artes plásticas, por exemplo,
as réplicas que se vendem (ou vendiam) no Porto, na Rua Sampaio Bruno, da “Última
Ceia” pertencem a um processo industrial (este de má qualidade, por acaso), mas
o objecto de arte de Da Vinci está única e exclusivamente no Convento de Santa
Maria delle Grazie; não pode pertencer a qualquer indústria, mesmo na
industrial cidade de Milão.
Mesmo no caso da indústria livreira, tal como na
discográfica, trata-se de indústrias que usam (sem discutir o mérito
democratizante, sem perda do carácter de negócio que são) como matéria-prima a
literatura e a música enquanto artes. Mas não são arte; a parte industrial é a
da reprodução e circulação das cópias registadas, não o produto original,
enquanto criação: a música (na pauta ou nos acordes da orquestra) e a literatura
em si (o texto “inventado”, mesmo na “série repetitiva temática” de um autor
como Paulo Coelho) não são uma indústria porque acto singular de criação. Quanto
à televisão, então, nem pensar! Ela não é, nunca foi e estou convicto de que
nunca poderá ser, por si e em si uma arte ou sequer um bem cultural: é um canal
que pode (e devia) escoar cultura, aliás no cumprimento de um serviço público,
mas, no caso português (e não só), a não ser por distracção certamente, tem
estado mais dedicada a escoar apenas subprodutos e diversas toxinas da ficção
nacional e internacional, algumas das quais são tão devastadoras no plano da
inteligência dos tele-espectadores, quanto criminosas na responsabilidade dos
seus “inventores” ou servidores de topo na cadeia da concretização desta ou da
dita informação noticiosa.
Todavia, é algo difusa a compreensão plena do
facto na questão do livro e do disco. Ao abordá-la entramos num capítulo mais
complexo em que falar de indústrias da
cultura pode fazer sentido, mas, mesmo assim, não é indústria cultural. É uma indústria que parte de
um bem cultural, mas não é aplicável a adjectivação ao substantivo. Isto não é
apenas semântica e mesmo que o fosse era decisivo na diferença, que é o que
para a semântica serve: não se trata de todo de indústrias culturais, mas, como
se disse, de indústrias da cultura. É
que a primeira designação diz-se de uma coisa e na segunda outra se diz, que me
abstenho de “explicar” mais porque os que sabem ou querem saber já o sabem ou facilmente
compreenderão e não precisam que o repita; e os que não compreendem ou não
querem compreender, e julgam uma mera nuance
despicienda, nunca o irão saber.
Entretanto, ao deslocarmo-nos para as artes
performativas (efémeras) ou o património edificado (perene), então nem em
indústrias da cultura podemos com
rigor falar, mesmo se um monumento serve para recolha massiva de bilhetes de
entrada e se integra nos roteiros do turismo cultural (termo aceitável, já se
verá porquê), tal como uma peça de teatro “franchizada”
a partir da Broadway ou do West-End. Trata-se, outrossim, de objectos
comerciais, o que não implica sempre e obrigatoriamente uma desclassificação
artística, entenda-se, mas não são, pela sua própria condição arquetípica, coisas
industriais. Na sua natureza, que não na substância necessariamente, mas enquanto
processo, trata-se mais de artesanato: coisa díspar e inconfundível, como o são
um boneco feito à mão pela Rosa Ramalho ou as bonecas Barbie feitas em série num molde.
Esta diferença ignorada ou esquecida com que muitos
“engolem” a coisa, não é, todavia, na matriz, uma ingenuidade ou coisa inócua. Serve
objectivamente às mil maravilhas um propósito de quem mete no mesmo saco – com
fins que ressaltam óbvios, mas que vão muito bem embrulhados para esconder as finalidades
últimas, coladinhas aos fenómenos económicos de cariz ultra-especulativo e
tóxico como o da banca em “overgambling”
– a cultura com a sua distribuição e formas de indústrias criativas, que é outra coisa, onde, por exemplo, se incluem a publicidade,
o design, a moda, a joalharia… E cuja importância ou intercessões não são
desprezáveis, mas é real e definitivamente uma outra coisa e outro sector. Tal
como o são o turismo e a cultura, mesmo havendo turismo cultural, se e quando o
destinatário comercial opta pelo consumo de bens e serviços culturais: aí sim,
é apropriado o termo porque é o turismo que como tal se classifica e não a
cultura que é uma face da indústria, como o sugere o termo “indústrias
culturais”. De resto, ao nível de indústrias criativas, como as já citadas,
nada impede que nelas seja incorporada mesmo uma criatividade genuinamente
artística no conceito, mas não no processo de produção.
Pode parecer excesso de rigor o cuidado em
demarcar territórios, mas é fundamental. É que nem toda a criatividade é
cultura, nem toda a cultura criativa. A Vénus
de Milo é um bem cultural e não
carece de incorporar nova criatividade para o ser. Mas exigiu-a para o ser,
obviamente. Todavia uma criatividade certamente muito diferente dos que fizeram
espectáculo de entretenimento o Circo Romano, por mais aguçada que a
perversidade da imaginação e do prazer obtido pelo receptor tenham,
inegavelmente, existido. Mesmo que no interior de um objecto de arte, que como
tal permanece (o Coliseu) acho que é fácil distinguir o fim e resultados das
coisas.
Aliás, ao
termo “cultura” não existem só os que reagem “rapando da pistola” de forma
radical; há sempre também quem esteja disposto a usar cortinas de fumo sobre o
assunto na duplicidade do uso do termo: no campo da antropologia e no da arte –
complementares, dialécticos, mas carentes de focagens diferentes ao abordar
certas questões, que importa, no interesse mútuo de cada um dos planos da
observação e uso do termo, ressalvar. É que naquilo do que estou a falar, em
termos de objectos, bens produzidos ou serviços desfrutáveis, há diferença
entre cultura artística e tradição cultural: a primeira “reinventa” (ainda que
na releitura de um monumento existe um móbil de sentimento e/ou pensamento
transformador do tempo que antecedeu o contacto com ele) e na segunda permanece
a repetição do adquirido, sem necessidade ao recurso da “redescoberta” do eu.
Quando não, do mesmo modo que as touradas são elegíveis como cultura (no
sentido de par da escultura, da música, do cinema, do teatro e assim), porque
não, em certas regiões de África, não pôr sob a mesma tutela a expressão
cultural, muito mais antiga e abrangente até, da excisão do clítoris?
Do mesmo modo se gera com facilidade a confusão
entre o que é (legitimamente e a montante do valor técnico e formal que possa
possuir) cultura, no sentido já atrás empregue fora da visão antropológica, e entretenimento,
na área confluente entre actividades, de forma idêntica, mas cuja fronteira é
simples: a primeira acrescenta alguma coisa no que o Homem se distingue das
demais criaturas do planeta, pela emoção, sentimento ou razão; a segunda nada
acrescenta para lá do prazer imediato que suscita o seu exercício ou recepção.
Assim, quando muito, nesta distinção entre as
tais indústrias criativas e esse jargão de “indústrias culturais”, o que pode acontecer
é constituir-se “industrial” alguma forma de expressão “artística”, nesse
sentido de entretenimento puro, como “cultura industrial”, no sentido que serve
de produto para consumo massivo sem olhar à génese do seu contributo para a
inevitável transformação que um acto cultural provoca no Homem, mesmo quando
pela negativa, é realizado junto dos que, não detendo os códigos para a sua
compreensão, o rejeitam ou torcem na leitura (facto a que as artes
performativas, porque efémeras, devem prestar maior atenção). Mas o porquê da
nossa “preocupação” é simples, porque uma e outra se distinguem
qualitativamente: a indústria busca o consumo, a cultura o usufruto; o
destinatário da indústria (inclusive a da distribuição cinematográfica) é um
cliente, o da cultura (inclusive na parte respeitante à criação artística no
cinema) é um fruidor. E isto, que pode à espuma das palavras ditas parecer
irrelevante, é, substantivamente ao nível da linguagem, tudo. Pelo menos tudo o
que importa distinguir neste campo, cujo étimo mais profundo de negócio (negotium de neg-, otium = negação, contraposição ao ócio)) remonta precisamente
à negação do ócio, que é o que, a par do aumento de conhecimento(s), justifica
a necessidade humana das artes e da literatura.
Castro Guedes, Director Artístico de
DOGMA 12
In
“As Artes Entre As Letras”, 30.Junho.2011