UMA RESPOSTA À CONTEMPORANEIDADE
Na categoria muito ampla de um teatro político, no
sentido de reflectir sobre a vida em comunidade, optei por aquilo a que chamo teatro da consciência. Trata-se de um
teatro que procura responder à crise civilizacional conducente a outras crises:
económicas, políticas (no sentido mais stricto
sensu), éticas, religiosas, existenciais, psicológicas ou o que seja. Um
teatro que procura dirigir-se ao homem numa visão de certa forma holística e
nos limites de uma cosmogonia ético-comportamental. Um teatro que nos defronte
perante nós mesmos e cada um por si, em pleno uso do seu livre arbítrio de
escolhas comportamentais, de relação e modelos sociais. Não se trata em tempo
algum de um teatro de natureza doutrinária, seja na forma da catequização, seja
na panegírica; e muito menos de intervenção em agit-prop.
Como o disse Almada Negreiros, “Quando eu nasci as
frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma
coisa – salvar a humanidade”. E foram essas frases já escritas, o erro trágico
dos totalitarismos no século XX, ao quererem impor o modelo tomado por bom,
como unívoco e certeiro, coartando a consciência individual dos cidadãos, o que,
por natureza humana até, o recusariam sempre liminarmente, mesmo se algum deles
fosse o melhor. Nem falo de práticas, no que resultaram e implicavam, mas mesmo
da construção ideada das utopias. E a resposta das democracias foi outro
embuste, revelando-as não só igualmente totalitárias no limite actual do
sentido único dos seus modelos socioeconómicos (uma contradição insanável no
próprio bojo, que as faz caminhar para autoritarismos de tipo novo), como,
mesmo se respeitada no seu sentido arquetípico e literal, a escolha pelas
maiorias torna-se em ditaduras de quantidade e não numa sociedade de qualidade.
Pior ainda porque essas quantidades são manipuladas por novos métodos de
perversidade nunca vista, recorrendo frequentemente e conscientemente à
passagem de mensagens subliminares e/ou à exibição de produtos entorpecedores
da consciência através da destruição objectiva de neurónios (fisicamente e não
em sentido figurado apenas) e do embotamento da parte límbica do cérebro. Ou,
dito de outra maneira filosófica e religiosa: mataram alma e espírito E se os
totalitarismos consagraram em lei o cânone único, as democracias repetiram-no
na prática de um mainstream (em
variantes populares e para intelectuais), fora do qual é impossível - ou quase
– a criação artística. Será muito diferente?
Então o que falha aqui? Como se podem alertar e
libertar da letargia pessoas (que são muito mais do que cidadãos ou indivíduos,
membros de classe social ou tipos de personalidade) para, no sonho marivaudiano de uma sociedade melhorada
pelo exemplo, “corrigirem seus defeitos”? Ou fazer com que, em última análise,
o pensamento de Ghandi “sê a mudança que queres ver nos outros” possa
transportar-se na obra sem que se perca no éter
do Século XIX?
Julgo que não é a apontar caminhos do alto do pedestal
de um palco, nem com combinações interactivas de exorcismo vazio de resultado.
Defendo – sem renegar os contributos das escolas não-aristotélicas ou mesmo
anti-aristotélicas – o regresso a uma catarse de tipo novo, que, não tanto pela
compaixão de identidade intimide, mas pela possibilidade de pelas personagens
(compósitas e não tipificadas à velha maneira do cínico e da ingénua, do herói
positivo e herói negativo, do protagonista e antagonista) com seus próprios
paradoxos ou contradições, mergulhar na consciência individual cada um por si e
para si, revendo-se criticamente, pelos preceitos aristotélicos, mas reordenados
em pathos-logos-ethos para chegar a ethos-logos-pathos. É um teatro da consciência e não de “consciencialização”,
porque esta palavra pressupõe, mais do que a tomada de consciência (num sentido
psicanalítico), a adesão à doutrina ou ponto de vista do que discursa,
tornando-se, em si, forma-outra de alienação da consciência em si. Este teatro
propõe um jogo de espelhos, no
sentido central da questão levantada por Rudof Laban, que lhe nega a natureza
de “uma instituição para fazer um julgamento moral”, mas antes “para despertar
(…) a responsabilidade pessoal e a liberdade de acção”.
Com o perigo de não agradar nem a gregos, nem a
troianos, cristalizados nas suas formas e fórmulas, assume-se na negação quer
da art engagée, quer da ars gratia artis, contraposição que não me
faz sequer sentido. Porque o papel da arte é sempre “pela arte” e sempre
“comprometida” com a consciência do artista, esteja a falar do que esteja. A
arte – de formas diversas, muito visível nas artes cénicas pelo imediatismo
comunicacional – é, ou deve ser para ser, mais um lugar de inquietação do que
de afirmação, de pergunta do que de resposta, de provocação (de consciências num
divã freudiano comunitário) do que de
comícios ou afrontamentos gratuitos (num divã de promiscuidades individuais
arrogantes).
O teatro da
consciência propõe-se substituir, actuando de acordo com a
contemporaneidade, as vanguardas de ontem, que se tornaram em modelos amorfos e
integrados; e que, à mistura com uma pós-modernidade – serôdia e deturpada do
seu sentido inicial, muitíssimo afastada da sua mãe modernidade - é bolor e
ranço do entretenimento digestivo pseudo-intelectual. No teatro da consciência não se quer cânone estético, mas sim uma
mudança de abordagem e relação criação/público. Nele cabem estéticas
diferenciadas entre si, mas convergentes num conjunto de paradigmas sobre o que
o teatro é; e, apesar de ser vanguarda nova, retoma muito do que as vanguardas
antigas deitaram fora com a água do banho: o bebé…
Castro Guedes,
Director Artístico de Dogma 12
In “As Artes Entre As Letras” de
15/01/2013
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