quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Uma reflexão em torno da Língua (Portuguesa)

castro_guedes

“Quando o ‘ar de época’ faz com que as Humanidades sejam lançadas para um plano de inutilidade, como se pudesse sequer a economia existir sem o Homem”… Uma reflexão em torno da Língua (Portuguesa) enquanto elemento de oralidade, mais especialmente como instrumento dramático, ou cénico, se melhor dito.

Este texto parte e desenvolve-se a partir de uma conferência inserida nas comemorações dos 800 anos da Língua Portuguesa, realizada na Atmosfera ‘M’ no Porto, em que esteve presente, em representação da SPA e por delegação do seu Presidente, o director artístico de Dogma/12. A comunicação menos longa e detalhada, é aqui completada com exemplos e aprofundamento de afirmações contidas pelo tempo útil da exposição.

Em teatro, quando o texto existe, e em minha opinião deve existir e é um dos seus elementos mais ricos, a palavra dita amplia e verte emoções expressas para o exterior, a partir da mediação do actor, cuja já é uma remediação do texto escrito, segundo o critério de leitura (no sentido de interpretação) do encenador e quiçá antecedida da do dramaturgista, que não o dramaturgo. Quero com isto dizer que à riqueza do vocabulário, da sintaxe e da morfologia da nossa Língua escrita, acrescem vertentes semióticas em que a palavra não é o único elemento. Mesmo sem contar com movimento ou gesto que a acompanhe (ou anteceda ou se lhe siga), a relação espacial da frase com o cenário, as relações de posições físicas e reacções de outras personagens, a luz, a sonoridade externa (música ou efeitos sonoros), a manipulação de objectos (adereços), o uso da indumentária (guarda-roupa)… Sem contar com isso tudo, como se dizia, e o mais que materialmente se lhe poderia ajuntar, a forma como a palavra em si é dita, aquilo a que chamamos a inflexão, pode alterar o sentido denotativo ou conotativo da que foi escrita em papel - ou, agora, em suporte digital - recriando mesmo uma semântica da e/ou na oralidade cénica.

Mesmo quando não há alterações morfológicas do próprio texto, que o dramaturgo pode propor (eu recorro muito a isso enquanto dramaturgo), ou a reconstrução sintáctica oral, a forma de dizer reinventa o significado inicial. A simples frase “Maria morreu”, por exemplo, tanto pode indicar alegria pela morte da Maria, como tristeza, desespero ou mera constatação... Ou… Ou… E mesmo que lhe introduzamos pontuação, as declinações prosseguem: “Maria… morreu!”, para lá da cor dos muitos sentimentos adquiridos como possíveis, tanto pode querer dizer que foi a Maria quem morreu, sendo as reticências, por exemplo, a expressão de dificuldade de dar a notícia a um terceiro, como na inversa estar a dizer à Maria que quem morreu foi um terceiro. Estes exemplos, apenas alguns, para lá de outras possíveis modulações de voz e tempos - as inflexões – com a cor do sentimento, permitem leituras diferenciadas de uma mesma interpretação por relação aos demais elementos cénicos já citados. Ou seja: se o contexto literário encerra nele mesmo do, mesmo sem chegar aos extremos de uma análise estruturalista que diminui o contexto (ou inverte a sua determinação pela estrutura significante da palavra, e não significado em) em narrativa dramática (cénica) os significantes das inflexões e das demais gramáticas do gesto, do movimento e o mais, são quem contextualiza a palavra e lhe dá o significado final.

É bem conhecida a célebre polémica entre Régio e Villaret sobre a divisão de tempos e divisões no verso inicial da “Toada de Portalegre”. E se a polémica permanecerá aberta, a questão principal que ela lança, mesmo sem se querer tomar partido em definitivo sobre os limites da liberdade de criação do intérprete, põe em claro que, com ou sem esse ‘direito’, o texto – poético, narrativo ou dramático – quando se vivifica teatralmente, ou mesmo apenas na sua declamação, ganha outra dimensão. Uma própria, que escapa ao autor do conto, do poema, da peça… Até porque, em última instância, neste particular do teatro, uma peça só ganha a condição de teatro quando se converte em palavra dita e interpretada. Antes pode (ou não) ser visto como um género literário, mas teatro não o é ainda. Para o ser, seguindo Peter Brook de perto, na mais minimalista expressão da coisa em si, temos que sem um espaço, um observador e um observado que age, não temos um acontecimento cénico.

Aliás, quase todos os grandes dramaturgos, de Sófocles a Gil Vicente, Shakespeare ou Molière, ou, mesmo mais próximos, como Lorca, Brecht ou Müller, não se atêm à condição de autores do texto – por mais sublime que este possa ser – mas à de obreiros do texto em cena. Por isso, em Shakespeare, provavelmente o maior de todos, são muitas as versões de um mesmo texto dramático, variantes do situs social ou temporal (ou às vezes dos próprios recursos de elenco). E a sua fixação é mesmo um dos desafios que hoje se coloca na escolha da versão e traduções. Além de grande parte do texto escrito ser meramente descritivo do local da acção, pois no teatro isabelino não havia cenário. Assim, se a substituição desses mesmos fragmentos de texto podem, sem prejuízo da obra, mesmo literária, ser substituídos por outros cenários ou meros signos cénicos, já o mesmo seria impraticável, fazê-lo em sede de um romance, onde a descrição é ela-mesma obra e não um suporte à obra ou da obra.

Do mesmo modo, com o surgimento do teatro romântico, o recurso à didascália substitui o texto directo para organizar o texto. Porém, pelo menos desde a autonomização da encenação como disciplina totalizante de coordenação da representação, o respeito pela didascália tende a ser optativo. De tal modo que com o aparecimento da dramatologia (ou na versão mais exacta do vocábulo alemão dramaturgie) é a própria sequência dos diálogos e das cenas que pode ser alterada, reconstruindo-se o texto original; e não necessariamente para o subverter, mas até qual mesmo para, pela releitura, o abrir a outras visões e enriquecer. Essa possibilidade, esse ‘teste’ de resistência, é, no fundo o que faz um clássico ser clássico, porque, qual cebola, não tem núcleo final central. Ou melhor: esse núcleo é o dos grandes temas humanos, transversais a épocas e contextualizações de diferente natureza: existencial, social, psicológica, histórica…

Além disso, a actualidade e contextualização da Língua – Portuguesa ou outra – no objecto artístico, e consoante este é, é uma determinante ao que se empresta e em que se impregna o texto. Ora, por maioria de razões, o texto dramático (escrito) quando se torna cénico tout-court, uma vez dito e interpretado, mais que texto em si, é um meta-texto, cujas propriedades e lógicas se escapam às regras da própria gramática da escrita, quiçá de certas noções estéticas, mesmo em escola ou estilo coincidentes da correspondente literária onde se filiam. O texto coloquial assume formas que, a respeitar tal e qual a norma na sua autenticidade, perderia verosimilhança. Para perceber do que estamos a tratar, dou um exemplo de uma tradução do norueguês para o francês em que aparece “et maintenaint, donnez-moi um verre d’eau, absolument”, aceitável como expressão coloquial, mas inadequado quando aparece traduzido à letra do francês para o português por “e agora dá-me um copo de água, evidentemente”, evidentemente…

Contudo – e certamente, quem com mais autoridade do que eu, os linguistas o podem confirmar -, grande parte da evolução e transformações da Língua resultam da prática da sua oralidade, a qual contamina primeiro e, muitas vezes, se faz a norma que substitui a anterior em vigor. Sem essa plasticidade não há, como julgo ser consensual afirmar, e não estar a cometer nenhuma foice em seara alheia, Línguas vivas. A Língua, pesem todas as regras e normas gramaticais, é elemento identificativo de uma comunidade pelo uso e entrelaçamento afectivo que contém e produz. E sem essa parte, na oralidade teatral, não há sequer acontecimento. Isto, julgo-o ainda mais óbvio, quanto é certo que a moda do “dizer o texto em branco” (quer dizer sem inflexões, nem intenção autónoma), se provou de todo desinteressante e um episódio de que, na Europa – e o fenómeno foi europeu – só muito raramente se encontram resquícios, em Portugal ainda e um pouco em França.

De resto, a sonoridade da Língua é uma determinante da sua contextualização. A própria pronúncia é uma evidência do espectro afectivo da língua falada e, por isso mesmo, cada vez está mais posta em causa a ideia de uma oralidade padrão. Mas não só a oralidade, mas também o próprio vocabulário, ainda que tendendo a atenuar-se com a aceleração comunicacional e uniformização do comunicado, é distintivo de geografias e classes sociais. “Porra” no Norte é calão, mas não chega a palavrão; dizer “fino” ou “imperial” distingue a origem local; e se a um pescador “doem as tripas”, a um empregado de mesa de um café “dói a barriga” e um professor universitário “tem cólicas”.

Não é um acaso que grande parte do trabalho de terapia psicológica – exuberantemente no caso da psicanálise – se faça pela verbalização. Na palavra, no modo como é dita e o momento em que se a diz, permite ao terapeuta descodificar sentimentos, enquadramento temporal e muito mais. E também não é um acaso, todos o sabemos, que a colonização linguística e a descaracterização da Língua (ou até a proibição do seu uso ao colonizado) constitui-se num dos poderosos instrumentos de dominação. É mesmo uma das mais subtis, mas mais brutais formas de anular a identidade comunitária. Tal como, ainda no mesmo plano, a escolha lexical não é asséptica: dizer privilégio em vez de direito, consumidor em vez de utente ou desfavorecido em vez de explorado não é a mesma coisa. A escolha da terminologia determina a origem ideológica do significado e a consequente percepção da realidade. Quando se fala em indústrias culturais está a negar-se o carácter de arte à criação, reduzindo-a à componente produtiva, mas como esta fosse ‘massificável’ e reprodutível sem intervenção da marca distintiva de obra para obra. E, no caso do teatro, até de dia para dia na recepção, pelo menos.

Aliás, também de um ponto de vista formal, a questão da ‘apresentação’ literária se coloca no que respeita à própria grafia. Pergunto, por exemplo, que seria dos futurismos, e outros modernismos, se não fosse a própria alteração da ortografia, da sintaxe e da morfologia normativas para existirem como movimento próprio? Mais: mesmo enquanto elementos lidos, o grafismo das palavras expande-se e expõe-se de formas menos convencionais, sendo que essas ou muitas outras, identificam até autores, ultrapassando a própria condição de movimento e tornam-se afirmação estilística de autor. A ausência da pontuação ortográfica em Saramago, a opção pela inexistência de letras maiúsculas em Hugo Mãe, são apenas dois exemplos entre muitos outros. Mais ainda se a própria ortografia normativa, quando respeitada na escrita, num texto teatral exige, para ser fluentemente audível – ainda que no mais puro naturalismo –, a alteração de alguns conceitos de pausas e semi-pausas que a ortografia indica. É o caso do ‘desaparecimento oral’ das vírgulas nos ‘que’, por exemplo.

Reconduzindo ao caso específico da Língua Portuguesa, os jogos linguísticos permitem um sem-número de conotações numa mesma frase, às vezes justamente em função da elocução impressa pela inflexão e a contextualização da e na acção cénica, tornando, também por isso, a nossa Língua numa Língua simultaneamente riquíssima e algo insular no contexto europeu. Há, de facto, expressões completamente intraduzíveis pela miríade de conotações que possuem, facto que, entre muitos outros, dificulta a internacionalização do teatro português. Porque se essa característica da Língua já é um obstáculo na escrita, na oralidade mais complexo é.

Contrapor-me-ão, com acerto, o célebre traductor, traditor para defender o fenómeno como comum e não específico da Língua Portuguesa. É verdade, mas em teatro ainda mais, a diferença acentua-se na Língua portuguesa, podendo argumentar-se com o aparente paradoxo da divisa da Benetton, a que nos habituámos a chamar slogan: todos iguais, todos diferentes.

Para além disto e do muito sobre que aqui se poderia introduzir em torno do texto teatral oralizado, ainda importa distinguir – embora comum a géneros literários, especialmente na novela e no romance, julgo eu – que as personagens falam de forma diferenciada. E se no texto escrito isso mesmo indicia aspectos de natureza sociológica, geográfica, étnica, psicológica, ideológica, epocal ou mesmo geracional… No teatro a mesmíssima escrita, quando se transpõe para o plano verbal, consoante o modo de dizer – seja em tom, volume, tempos ou o mais ainda –, acentua ou recaracteriza a personagem literária quando feita personagem cénica.

De tudo o dito poderia dar ainda outros exemplos concretos, mas já vai o texto longo para o assunto em si. Mesmo assim, não gostaria de terminar sem deixar de dizer duas coisas que se completam a contrario. É que tenho para mim que sem teatro, a Língua seria, muito mais pobre; ou melhor dito: não teria expressão artística autónoma a riqueza e diversidade da oralidade. Em contrapartida, esse aspecto não significa em tempo algum qualquer superioridade ou completude do texto dramático em cena versus o demais texto escrito.

Mas esta simples constatação pode ajudar a fazer compreender que o teatro não é, como para muitos pareceu ser, um género literário menor. É, isso sim, um género para-literário, embora profundamente enraizado na Língua. Por isso e nisso, Portugal, ao contrário de ideia muitas vezes feita, não esgota a sua grandeza dramatúrgica em Vicente, O Judeu e Garrett. O que se esgota aí é o desconhecimento de uma de duas coisas, ou das duas em simultâneo. Uma delas é o que respeita aos textos existentes, que são múltiplos e diversos, ainda que com naturais oscilações de maior ou menor proficuidade, por razões políticas ou civilizacionais, mas não só. O teatro português, começado antes de Gil Vicente – como António José Saraiva deduziu, e com Óscar Lopes o argumentou, depois de Teófilo Braga o intuir - prolongando-se para os dias de hoje, tem uma continuidade de corrente constante. A outra coisa é fazer a distinção daquilo que determina o valor efectivo do texto teatral, mesmo enquanto tal, como embrião de si mesmo em cena e não enquanto obra acabada na escrita, o que determina que na sua avaliação a mesma se não extingue no valor literário de per si.

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