sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

A SEMÂNTICA, NO TEATRO TAMBÉM, NUNCA É ASSÉPTICA, MEUS AMIGOS!


A SEMÂNTICA, NO TEATRO TAMBÉM,
NUNCA É ASSÉPTICA, MEUS AMIGOS!

Dogma 12 é um projecto teatral que se afirma a si mesmo “uma singularidade na pluralidade que se deseja” e o seu Manifesto Fundador e demais informação, incluindo a actual apresentação, em Lisboa, da peça “Três Mulheres em Torno de Um Piano”, pode ser encontrada em http://estudiodogma12.blogspot.pt/ … Mas as “singularidades” estendem-se ao léxico preferido, o qual, se prolonga para lá de Dogma 12 e me pareceu útil trazer a estas páginas como “produtos” de pensamento e reflexão sobre o que o teatro é para nós, desejando mesmo que outros haja. Mas não nos furtamos ao utilíssimo confronto de ideias trocado pela claudicação em consensos estagnados. No fundo a semântica - isso sim, em afirmação dogmática universal - nunca é asséptica.
Espectáculo é tudo quanto envolve exibição, normalmente ligada ao sentido imediato e redutor da impressão visual dos sentidos, não tendo de possuir substância, seja de forma ou conteúdo. Logo, preferimos, por exemplo: peça (uma designação simples, mas não suficiente, porque para lá do texto, o objecto artístico completa-se em outras disciplinas); opus (talvez o termo mais querido, desde logo ligando o conceito à erudição do gosto e composição, e prevendo uma continuidade no conjunto de obras, acrescentando-lhe, por isso, um número à frente, como na música); ou obra (sua tradução); ou completando como obra artística; ou, fora de um âmbito de apresentação, mas em referência à coisa em si: objecto artístico. Também numa designação mais prática e directa, ao nível da difusão da obra, criação ou produção. A primeira ligada ao conceito do eixo da concepção, a segunda à sua concretização.
Assim, também em vez de espectadores usamos a designação mais abrangente de público, embora sabendo que este não é uma entidade única e pode haver e há, com mais rigor, públicos e não público, se a questão se transporta para um âmbito sociológico de caracterizações sistémicas. Mas o conjunto de pessoas presentes numa sessão constitui, indistintamente, “o público dessa mesma sessão”: mesmo que composto por pessoas de diferentes públicos, na asserção anterior. Mas também a expressão mais simples e tradicional de plateia (no sentido metafórico, que engloba os que estejam no balcão, camarotes ou dispostos em anfiteatro ou “en ronde”) merece-nos aceitação, porque adopta uma designação genérica comum em várias línguas e latitudes, com ampla significação mais simbólica do que ideo-signica. Ou ainda o termo de assistentes, tal como público pode ser substituído por assistência. (Já voltaremos a certas reservas que podem a estes dois últimos ser colocadas).
Porém se falarmos a um nível de materialidade meta-momento e nos debruçarmos mais sobre estas pessoas como realidade permanente de natureza socioeconómica, clientes ou consumidores em arte não há de todo. Aí já nem se trata de uma preferência, mas de uma incorrecção absoluta (na própria “pluralidade”) e representa o ruído ideológico de uma concepção económica e social de organização de um tipo específico do capitalismo. A obra de arte é destinada a fruidores, usufrutuários ou receptores (embora este termo seja ou possa ser, em determinados casos performativos insuficiente por passivo, como assistência, mas nos nossos dogmas tal problema não se põe, porque não consideramos no nosso teatro a primordialidade de interacção física entre os termos estruturalistas de emissor e receptor). Clientes e consumidores podem ser, realmente os de espectáculos no sentido em que o declinamos logo no início. Em arte ganha-se, recolhe-se, aumenta-se; não se consome, gasta ou usa.
Entretanto, continuando, para indicar quem realiza o objecto, preterimos Ficha do Espectáculo além da questão da recusa da palavra espectáculo, por dividir os oficiais da obra em Ficha Artística e Ficha Técnica distinguindo de forma classista (e não incluindo sequer a totalidade) as diferentes formas de participação que tornam possível e realizam a criação/produção. Assim, a opção por Ficha de Trabalho, mais abrangente e reconhecendo a importância da incorporação do trabalho em arte, parte maioritária (esquecida) da sua construção, mesmo que a mais pequena, a do talento seja complemento indispensável.
Termos técnicos generalizados como bastidores, camarins, caixa de palco, porta da caixa (não tanto entrada dos artistas), cabine de som e luz, teia, maquinaria… Ou mesmo da designação de ofícios específicos como actor, dramaturgo, dramatólogo (retirado do léxico brasileiro: o que estuda e não o que escreve o texto), operador de luz, cenarista (a recuperação etimológica do termo referente ao que concebe o cenário) e cenógrafo (o que o executa ou coordena essa execução), encenador, etc… não carecem de outras designações, mesmo em casos que se poderiam justificar se se “escavasse até ao fundo”; mesmo pano, ovação e assim aceitam-se sem mais. Uma coisa é a afirmação identitária da singularidade, outra seria um preciosismo ou perfeccionismo que valorizaria excessivamente a forma num labirinto morfológico, quando se trata de uma sintaxe de caminhos. Contudo a ideia de autor por dramaturgo é recusada liminarmente, uma vez que não só são múltiplas as autorias (e entre estas, hoje, no resultado final até prevalece a do encenador sobre o dramaturgo) como remete para uma visão recessiva romântica (serôdia) e uma universalidade de estrelato, que se recusa igualmente a todos e cada um dos autores e fazedores ou fazedores/autores e autores/fazedores.
Embora se pudesse prolongar ainda muito este artigo, porque o “osso da questão” já parece clarificado, acrescenta-se apenas que gostamos mais de valorizar, na análise dos resultados, conceitos como eficácia ou eficiência em vez de sucesso ou êxito. De resto – atenção! - em processo de criação e mesmo em certos aspectos de apresentação pública não confundimos, antes afirmamos, a indispensabilidade de conceitos tais como hierarquias e direcções, competências e graus de experiências, mérito e reconhecimento. A recusa de certo vocabulário é de natureza estética e ideológica, não de irresponsabilidade ignorante na negação de diferenças ou incompreensível opções de basismos ou igualitarismos grosseiros que conduzem inevitavelmente à destruição da exigência artística. No nosso trabalho, aliás, valorizamos a disciplina e sobretudo a autodisciplina, o rigor da execução e a humildade na aprendizagem.
Castro Guedes
Director Artístico de Dogma 12
Publicado no quinzenário “As Artes Entre As Letras”

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