A SEMÂNTICA, NO TEATRO
TAMBÉM,
NUNCA É ASSÉPTICA,
MEUS AMIGOS!
Dogma 12 é um projecto teatral que se afirma a si
mesmo “uma singularidade na pluralidade que se deseja” e o seu Manifesto
Fundador e demais informação, incluindo a actual apresentação, em Lisboa, da
peça “Três Mulheres em Torno de Um Piano”, pode ser encontrada em http://estudiodogma12.blogspot.pt/ … Mas as
“singularidades” estendem-se ao léxico preferido, o qual, se prolonga para lá
de Dogma 12 e me pareceu útil trazer a estas páginas como “produtos” de pensamento
e reflexão sobre o que o teatro é para nós, desejando mesmo que outros haja. Mas
não nos furtamos ao utilíssimo confronto
de ideias trocado pela claudicação em consensos
estagnados. No fundo a semântica - isso sim, em afirmação dogmática universal
- nunca é asséptica.
Espectáculo é tudo quanto envolve
exibição, normalmente ligada ao
sentido imediato e redutor da impressão visual dos sentidos, não tendo
de possuir substância, seja de forma
ou conteúdo. Logo, preferimos, por exemplo: peça (uma designação simples, mas não suficiente, porque para lá do texto, o objecto artístico
completa-se em outras disciplinas); opus
(talvez o termo mais querido, desde logo ligando o conceito à erudição do gosto e composição, e prevendo uma continuidade
no conjunto de obras, acrescentando-lhe, por isso, um número à frente, como
na música); ou obra (sua tradução);
ou completando como obra artística;
ou, fora de um âmbito de apresentação, mas em referência à coisa em si: objecto artístico. Também numa
designação mais prática e directa, ao nível da difusão da obra, criação
ou produção. A primeira ligada ao
conceito do eixo da concepção, a
segunda à sua concretização.
Assim, também em vez de espectadores usamos a designação mais abrangente de público, embora sabendo que este não é
uma entidade única e pode haver e há,
com mais rigor, públicos e não
público, se a questão se transporta para um âmbito
sociológico de caracterizações
sistémicas. Mas o conjunto de pessoas presentes numa sessão constitui, indistintamente, “o público dessa mesma sessão”:
mesmo que composto por pessoas de diferentes públicos, na asserção anterior. Mas também a expressão mais simples
e tradicional de plateia (no sentido
metafórico, que engloba os que estejam no balcão, camarotes ou dispostos em
anfiteatro ou “en ronde”) merece-nos
aceitação, porque adopta uma designação genérica comum em várias línguas e
latitudes, com ampla significação mais simbólica
do que ideo-signica. Ou ainda o
termo de assistentes, tal como
público pode ser substituído por assistência.
(Já voltaremos a certas reservas que podem a estes dois últimos ser colocadas).
Porém se falarmos a um nível de materialidade meta-momento e nos debruçarmos mais
sobre estas pessoas como realidade permanente
de natureza socioeconómica, clientes ou consumidores em arte não
há de todo. Aí já nem se trata de uma preferência, mas de uma incorrecção absoluta (na própria “pluralidade”)
e representa o ruído ideológico de
uma concepção económica e social de organização de um tipo específico do capitalismo. A obra de arte é destinada a fruidores,
usufrutuários ou receptores (embora este termo seja ou
possa ser, em determinados casos performativos
insuficiente por passivo, como assistência, mas nos nossos dogmas tal problema não se põe, porque
não consideramos no nosso teatro a primordialidade de interacção física entre os termos estruturalistas de emissor e receptor). Clientes e consumidores podem ser, realmente os de espectáculos no sentido em que o
declinamos logo no início. Em arte
ganha-se, recolhe-se, aumenta-se; não se consome, gasta ou usa.
Entretanto, continuando, para indicar quem realiza
o objecto, preterimos Ficha do Espectáculo além da questão da
recusa da palavra espectáculo, por dividir os oficiais da obra em Ficha Artística
e Ficha Técnica distinguindo de
forma classista (e não incluindo sequer
a totalidade) as diferentes formas de participação que tornam possível e
realizam a criação/produção. Assim, a
opção por Ficha de Trabalho, mais
abrangente e reconhecendo a importância da incorporação
do trabalho em arte, parte maioritária (esquecida) da sua construção, mesmo
que a mais pequena, a do talento seja
complemento indispensável.
Termos técnicos generalizados como bastidores,
camarins, caixa de palco, porta da caixa (não tanto entrada dos artistas), cabine de som e luz, teia, maquinaria… Ou
mesmo da designação de ofícios específicos como actor, dramaturgo, dramatólogo
(retirado do léxico brasileiro: o que estuda e não o que escreve o texto),
operador de luz, cenarista (a recuperação etimológica do termo referente ao que
concebe o cenário) e cenógrafo (o que o executa ou coordena essa execução),
encenador, etc… não carecem de outras designações, mesmo em casos que se
poderiam justificar se se “escavasse até ao fundo”; mesmo pano, ovação e assim
aceitam-se sem mais. Uma coisa é a afirmação identitária da singularidade,
outra seria um preciosismo ou perfeccionismo que valorizaria excessivamente a forma
num labirinto morfológico, quando se
trata de uma sintaxe de caminhos.
Contudo a ideia de autor por
dramaturgo é recusada liminarmente, uma vez que não só são múltiplas as
autorias (e entre estas, hoje, no resultado final até prevalece a do encenador sobre o dramaturgo) como remete para uma
visão recessiva romântica (serôdia) e uma universalidade de estrelato, que se recusa igualmente a todos e cada um dos autores e
fazedores ou fazedores/autores e autores/fazedores.
Embora se pudesse prolongar ainda muito este artigo,
porque o “osso da questão” já parece clarificado, acrescenta-se apenas que
gostamos mais de valorizar, na análise dos
resultados, conceitos como eficácia
ou eficiência em vez de sucesso ou êxito. De resto – atenção! - em processo
de criação e mesmo em certos aspectos
de apresentação pública não confundimos, antes afirmamos, a
indispensabilidade de conceitos tais como hierarquias
e direcções, competências e graus de
experiências, mérito e reconhecimento. A recusa de certo
vocabulário é de natureza estética e ideológica, não de irresponsabilidade
ignorante na negação de diferenças ou
incompreensível opções de basismos ou
igualitarismos grosseiros que
conduzem inevitavelmente à destruição da exigência
artística. No nosso trabalho, aliás, valorizamos a disciplina e sobretudo a autodisciplina,
o rigor da execução e a humildade
na aprendizagem.
Castro Guedes
Director Artístico de Dogma 12
Publicado no quinzenário “As Artes Entre As Letras”
Sem comentários:
Enviar um comentário